A chave da cidade

Bem, a viagem começou e terminou e não tive a mínima possibilidade de atualizar o blog como acreditava que seria possível. Pelo menos para mim, não funcionou a idéia de "viver tudo que há pra viver" e ainda escrever o diário de bordo.
Mas tudo bem, porque muita coisa ficou gravada, nem tudo foi elaborado ainda (acho até que muita coisa nem vai ser...) e fiz umas anotações ou outras que me permitem postar aqui e compartilhar um pouquinho do que foi a experiência dessa viagem. Vamos lá.
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Pôr-do-sol  em Barcelona

Dá para viajar de várias maneiras. E aqui estou falando só das várias maneiras literais, nada em sentido figurado.
Quando eu comecei a planejar minha viagem para a Europa, entendi logo que não faria uma viagem "sightseeing". Nada de agências de viagem. Nada de visitar 10 países em 15 dias. Sem city tour. Não que eu seja contra este tipo de viagem, mas sabia que não era disso que precisava.
Por isso me limitei a três grandes cidades: Amsterdam, Paris e Barcelona.
Quando a gente faz viagem sightseeing a gente VÊ a cidade. Eu precisava ENTRAR nelas.Não entrar e residir, experimentar a vida como moradora, mas entrar e manter meu status de turista. Claro que eu não sabia disso assim, só tinha certeza de que não estava lá só para ver e passar pelos pontos turísticos.
A clareza da "natureza" da minha viagem, que eu não sou capaz de descrever de todo mas de vivenciar, me atingiu em Amsterdam já.
Para entrar em uma cidade você vai precisar da chave. Essa chave não vai estar disponível no aeroporto ou no ponto de informações turísticas. Não está tampouco indicada no mapa da cidade.
Talvez existam chaves diferentes para uma mesma cidade conforme a pessoa, conforme o momento. Não sei, mas vou poder falar das minhas.
Durante o primeiro dia em Amsterdam e na metade do segundo, eu vi muita coisa: fui a museus, percorri o centro da cidade a pé, fui ao Red Light District, entrei em sex shops, andei de barco nos canais, tirei foto no IAMSTERDAM, andei de tram, fui ao mercado, vi guerra de travesseiro na praça central... Todas coisas muito legais ou interessantes ou divertidas ou muito malucas e que adorei fazer. Mas estava sempre vendo, do lado de fora, o movimento, a cidade, os nativos e os turistas.
Então, na tarde deste segundo dia, quando procurava a Rembrandtplein (que não encontrei até o final da viagem), andando pela terceira vez na mesma rua cheia de lojas, passei por um delicatessen. Na verdade,  me chamou atenção as frutinhas nas banquinhas do lado de fora. Cheguei perto pra ver. Um casal de turistas japonês, bem típico, tentava se acertar com a dona da delicatessen, o ser mais disponível e simpatico que vocês podem imaginar.
Fui atraída pela cena e esqueci as frutas que tinham chamado minha atenção e a praça que estava procurando (e que precisava ser encontrada até umas 5 da tarde pra eu poder ir de graça no museu ali perto!!).
Quando percebi, estavamos eu e os japoneses experimentando frutinhas azedas e tentando pronunciar seus nomes em holandês (vale a pena imaginar a cena). Sei que ao final, o casal saiu feliz e confuso com um pacotinho de algo parecido com maracujas mas com cor de laranja e eu comprei lindas frutinhas vermelhas e mais uma garrafa de chá verde - mesmo sem gostar desse chá - que era lindíssima só porque vi um outro casal (com cara de local) levar uma enquanto minhas frutas eram devidamente embaladas.
Foi nesta situação extremamente simples que eu "entrei" em Amsterdam de vez. A minha felicidade ao sair da loja era tamanha que a cidade tinha mudado de cor. Uma sensação de contentamento e a consciência de que aquelas sensações todas tinham mudado meu status de viajante naquele exato momento.
Sei que é difícil de entender e tenho obtido melhores resultados ao vivo quando falo de tudo isso.
Acontece que a partir desse momento e - como depois eu pude viver e saber - a cada momento em que eu "ganhava" a chave da cidade e nela entrava a experiência completa da cidade fazia sentido. Um sentido além de explicações em alguns momentos. Eu não apenas observava a vida na cidade mas eu passava a fazer parte dela, vivia minha história ali, coisas aconteciam comigo, não apenas essas coisas de viagem, mas coisas de vida. As experiências se completam e a vida vira presente absoluto, sem expectativas, sem fantasias, vivência bruta de um tempo presente.
A consciência deste momento foi plena também, mas - quebrando todos os meus padrões anteriores - pouco analítica. Naquele momento, não imaginei nem racionalizei nada para além daquelas sensações e da percepção de que tudo isso estava acontecendo. Aceitei e vivi.
Também não pensei que isso fosse se repetir no decorrer da viagem nas outras cidades.
A chegada a Paris foi difícil, apesar da facilidade de me despedir de Amsterdam.
Tive uma absurda crise histérica já no voo. Como o Isma falou, cheguei armada. Não sei bem porque ainda mas desisti de ir pra Paris minutos antes de embarcar. Bem, isso também é assunto para outro post. A questão aqui é que meu primeiro dia na cidade foi no mínimo tenso e cheguei inclusive a levar uma pedrada de um traficante e uma bolada arrebentou meu celular nas escadarias da Sacre Couer. Tirando o reencontro com os amigos queridos, odiei todos os outros minutos deste primeiro dia. Mas calma, porque fui devidamente resgatada por brasileiras que dividiram o mesmo quarto comigo no hostel e me levaram pra Disney no dia seguinte. rs
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Outra coisa que precisa ser contada aqui: para completar o panorama sinistro, no meu terceiro dia na cidade perdi minha aula do Cordon Bleu. Sim aquela que estava paga e que no post anterior eu falei sobre o trajeto de ônibus virtualmente testado.
É minha gente, não foi o suficiente.
Não consegui encontrar o lugar!
Simplesmente...
Isso também será contado melhor depois..
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Bem, com tudo isso, depois de dar uma superada leve nas desventuras em série com a ajuda dos amigos, do Louvre e da Notre Dame (assuntos para mais outros posts), acordei no meu quarto dia de Paris e fui tomar café da manhã.
A programação, por ser sábado, estava definida por conta dos meus amigos e da vinda do Carlos direto de Portugal. Teríamos a cidade formalmente apresentada a nós pelos queridos residentes com direito à Festa da Primavera. O dia prometia e tinha amanhecido absurdamente lindo (aliás como em todos os outros dias em que estive em Paris... essa cidade estava defintivamente tentando me seduzir!).
Estava eu, como nos dias anteriores, sentada numa mesa sozinha com minha bandeja de café da manhã observando o movimento e animação dos vários grupos de estudantes hospedados no hostel (muito legal isso! turmas acompanhadas de seus professores de vários lugares da França, Itália e Inglaterra) quando... BATEU!
Lembrei da frase do Hemingway no meu livro:
Se você quando jovem teve a sorte de viver em Paris, então a lembrança o acompanhará pelo resto da vida, onde quer que você esteja, porque Paris é uma festa ambulante. 
Fui invadida por uma sensação muito boa: felicidade por esses estudantes estarem ali, associada com a constatação de não ser mais adolescente e estar em outro tempo. Simultaneamente, dois professores que acompanhavam esse grupo, notando que eu estava observando com um sorriso, me encararam e recebi uma piscadela cumplice.
Estava ali neste momento, depositada na minha bandeja, junto ao pain au chocolat que eu estava comendo, a chave de Paris! Veio acompanhada da sensação de não ser mais "jovem" assim mas, ao contrário do que se pode pensar, não foi uma sensação ruim... mas muito boa, inclusive por entender que meu momento permite descobertas também, mas sobretudo a possibilidade de reconhecer a dimensão e o valor de tudo que estou vivendo, coisa que dificilmente você percebe quando é assim tão jovem. Talvez a excitação constante seja o pressentimento disso tudo, mas a consciência, essa pertence a mim e aos professores.
Terminei meu café e sai, com "La vie en rose" rodando na minha cabeça... na versão cantada por Louis Armstrong e não na de Piaf. Aparentemente para não estar lost in translation em Paris ainda dependo do inglês... rsrs
A cidade se abriu! Me integrei ao lugar! Seis dias plenos de sentidos!
Como já tinha acontecido duas vezes, foi inevitável esperar pela chave de Barcelona. Ao contrário de Paris, foi muito fácil chegar e passar meus primeiros dias em Barcelona.
Mesmo assim, não é disso que depende a chave da cidade. Não adianta procurá-la. Ela aparece e vai até você.
Se é assim, não precisava ficar preocupada, provavelmente uma hora aconteceria. E já estava me achando no lucro de qualquer forma.
Foi ao final do segundo dia, depois de andar por metade dos pontos turísticos do lugar, subindo muito por umas 10 horas no total.
Estava voltando pra casa e passando muito feliz e contente pelo museu e pelas fontes mágicas. O show tinha acabado de começar, as pessoas ao redor muito contentes e... o sol se pondo.
Sei que ajudei um casal de turistas a tirar fotos (ficaram horríveis!!! kkk), tirei duas fotos do pôr-do-sol e desci três degraus foi quando aconteceu. Da maneira mais linda possível: preparei a máquina para mais uma foto do sol se pondo e mirei... quando olhei estava lá! A sensação de presente pleno, um espetáculo lindíssimo e uma emoção profunda! Entrei em Barcelona! Os sentidos todos reunidos em um momento...
enfim...
Uma viagem pode ser muito boa mesmo se você apenas passa ou vê cada lugar... muitas vezes se acumula cultura, o que é um bem inestimável. Você vê arte, vai a museus,come coisas gostosas, vê a Torre Eiffel...
Mas uma vez que você entra nas cidades coisas acontecem: você acorda numa segunda-feira em Amsterdam com a certeza de que naquele dia vai ser a pessoa mais feliz do mundo e é! Você anda de bicicleta pelos campos de tulipas dos seus sonhos de criança, você namora pelos canais, carrega uma garrafa de vidro com um chá que você não gosta por três países... Faz picnic na ponte mais romântica de Paris sem se sentir carente ou solitária, vai ao Museu Rodin, a torre pisca de noite só para você, encontra Van Gogh... Vai ao parque Guell, vira atração turística no almoço, sente sua fé renascer na Sagrada Família...
E tudo isso significa!

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