curious about: OS ÚLTIMOS LÍRIOS NO ESTOJO DE SEDA

Vendo as fotos do post abaixo, me lembrei de um texto da Marina Colassanti que dá nome ao seu livro de crônicas: Os últimos lírios no estojo de seda. Ganhei o livro o meu pai de presente de aniversário depois de tanto falar nele, já que gosto muito da escritora e adoro crônicas. Embora as crônicas nem sempre tenham a força dos seus contos, algumas possuem um resultado bastante emocional e metafórico, transitando a meio caminho entre uma e outro.
Reproduzo aqui:
"Quando Jung Chang, escritora e historiadora que acaba de publicar uma impressionante biografia de Mao, esteve no Rio para o lançamento do seu livro Cisnes Selvagens, começou a palestra na Casa Laura Alvim por um gesto: da pasta preta tirou um sapatinho de seda bordado que havia sido da sua avó, e a braçadeira que ela mesma havia usado como guarda vermelha da Revolução Cutural. O sapatinho tinha pouco mais de dez centímetros.
Provavelmente, ela não sabia que, na China, o fotógrafo Li Nam já havia começado a fazer o registro dos san-tsu-gin-lian, ou "lírios dourados de oito centímetros", como eram chamados os pés femininos encolhidos. Agora Li Nam acaba de inaugurar a sua exposição em uma galeria fotográfica em Pequim, e em aproximadamente cinquenta fotos mostra a nova china "A última geração de mulheres de pés de lírio".
A avó de Jung Chang quase escapou de pertencer a essa geração. Poucos anos bastaram para que seu destino fosse andar pelo resto da vida "parecendo um broto de salgueiro na brisa da primavera". Mas ao dois anos de idade, quando a mãe dobrou para trás os dedos dos seus pés e os prendeu com uma tira de pano de seis metros de comprimento, não podia saber que o processo tinha a sua origem num gesto poético. Ninguém lhe disse que dez séculos antes, em busca de um sofisticado prazer, Li Yu, grande poeta do amor e segundo soberano da dinastia dos Tang, havia obrigado sua favorita Yaoniang a enfaixar os pés para dançar sobre uma flor de lótus estilizada. E se tivessem dito, teriam de acrescentar que ele não havia quebrado o arco dos pés da amada com uma pedra, como fizeram com a menininha, nem haviam molhado a tira de pano, para que encolhesse ao secar, aumentando o aperto e o sofrimento.
As fotos de Li Nam são todas de mulheres acima dos 70 anos. Mulheres que passaram a vida com dores excruciantes, escravas de pequeno pés que há muito haviam perdido toda a razão de ser. O processo não tem fim, com qualquer idade basta deixar o pé solto, para que ele fuja aos seus limites e se expanda. Em certa época, a avó de Jung Chang chegou a tirar as ataduras e os pés cresceram um pouco, mas o crescimento foi tão doloroso quanto a encolha, porque os ossos quebrados não podiam voltar à posição normal, nem equilibrar o pé. Ela vivia em sofrimento constante, e quando as duas voltavam das compras a primeira coisa que a avó fazia "era mergulhar os pés numa bacia de água quente, suspirando de alívio. Depois punha-se a cortar os pedaços da pele morta". A dor vinha dos ossos, e das unhas que se cravavam nas plantas dos pés.
Ouvi Jung Chang falar da sua avó naquela conferência - eu havia sido convidada para apresentá-la. Na primeira fila da platéia, sua mãe Bao Qin a escutava - atenta, embora não falasse inglês. Jung Chang contou como a avá recusou-se a cortar seus belos cabelos quando a Revolução Cultural proibiu cabelos compridos e como, por isso, não saiu mais de casa. Contou como defendeu a filha nas perseguições e apoiou o genro na loucura. Como conseguia inventar refeições para a família e para a filha hospitalizada, quando faltavam víveres e a cota de carne mensal era de 250 gramas por pessoa.
Não sei o que diz o texto do catálogo da exposião de Li Nam. Não sei o que é permitido dizer. Aqui certamente falaria de mutilação e submissão. Mas aprendi com Jung Chang, naquela tarde, que ataduras não bastam para prender as asas de um cisne selvagem".
fonte: Os últimos lírios no estojo de seda, de Marina Colassanti, Crônicas Ilustradas. Belo Horizonte: Editora Leitura, 2006.

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